DISTÚRBIOS HIDROELETROLÍTICOS
Distúrbios da concentração do Cálcio
O cálcio é um íon essencial para diversas funções vitais no organismo, tais como, regulação neuromuscular (transmissão do impulso nervoso, contração muscular), coagulação sanguínea, adesão intercelular, transporte e secreção celular, função cardíaca e vasomotora, regulação hormonal, metabolismo ósseo, reações enzimáticas, entre outras.
É um íon abundante no organismo, representando cerca de 2% do peso corporal. Cerca de 99% do cálcio corporal se encontram nos ossos (principalmente na forma de fosfato de cálcio), sendo que 0,99% circulam no sangue e compartimento intersticial e somente 0,01% se localiza no meio intracelular. Cerca de 40-50% do cálcio circulante, se encontra ligado às proteínas plasmáticas, enquanto o cálcio iônico (fração metabolicamente ativa), representa em torno de 50-60% do cálcio sérico total.
A regulação da homeostase do cálcio e fósforo envolve mecanismos complexos e variados, com a participação do trato gastrintestinal, rins, sistema esquelético, sistema endócrino, entre outros.
Faixas de normalidade do cálcio
Cálcio Total: 2,2 a 2,6 mmol/L ou 4,4 a 5,2 mEq/L ou 8,5 a 10,5 mg/dL
Cálcio Iônico: 1,0 a 1,3 mmol/L ou 2,0 a 2,6 mEq/L ou 4,0 a 5,0 mg/dL
Hipercalcemia
A hipercalemia se caracteriza pela elevação do cálcio sérico e é definida pelos níveis de cálcio total acima de 10,5 mg/dL ou cálcio iônico superior a 1,3 mmol/L. É um distúrbio infrequente e pequenas elevações do cálcio sérico podem ser assintomáticas ou causar manifestações clínicas discretas. Somente níveis mais elevados podem ser significativos. A concentração de cálcio total acima de 15 mg/dL é uma emergência médica e pode ocasionar manifestações cardiovasculares, neurológicas e renais, incluindo náuseas, vômitos, hipercalciúria, hipertensão arterial, arritmias cardíacas, irritabilidade/letargia, hiporreflexia, paresia, ataxia, convulsões, confusão mental, coma, óbito. As causas da hipercalcemia estão relacionadas à iatrogenia em UTI's (administração excessiva de cálcio em soluções parenterais ou diálise), hipervitaminose D, hiperparatireoidismo, medicamentos, acidose, entre outras.
O tratamento inclui:
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Monitorização (ECG, balanço hídrico, gasometria, Na+, K+, Cl-, Ca iônico, Ca total, fósforo e magnésio)
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Suspensão da oferta de cálcio e vitamina D
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Hidratação venosa de expansão com soro fisiológico 20 mL/Kg/hora por até 4 horas
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Hidratação venosa de manutenção 150% das necessidades hídricas diárias (iniciar logo após a expansão)
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Furosemida 1 mg/Kg a cada 4 horas
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Calcitonina: considerar em caso de persistência do quadro após terapia com hidratação e diuréticos
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Diálise
Hipocalcemia
A hipocalcemia se caracteriza pela diminuição do cálcio sérico e é definida pelos níveis de cálcio total abaixo de 8,5 mg/dL ou cálcio iônico inferior a 1,0 mmol/L. É uma alteração bem mais frequente que a hipercalcemia, sobretudo no período neonatal e em pacientes críticos hospitalizados em UTI's pediátricas. Suas causas compreendem alcalose, hipomagnesemia, hiperfosfatemia, sepse, doença renal crônica, hipoparatireoidismo, medicamentos (aminoglicosídeos, fenitoína, betabloqueadores...), entre outras. No período neonatal, a hipocalcemia está relacionada, frequentemente, à prematuridade, asfixia neonatal, RN's de mães diabéticas, síndrome do desconforto respiratório, sepse, exsanguineotransfusão, deficiências nutricionais, hipoparatireoidismo transitório, entre outras.
O quadro clínico é mais frequente quando os níveis de cálcio iônico estão abaixo de 3 mg/dL e se manifesta com abalos, tremores, espasmos musculares, clônus e fasciculações musculares, hiperreflexia, tetania, convulsões, cianose, apneia. Manifestações cardiovasculares incluem quadros de insuficiência cardíaca, redução da contratilidade miocárdica, bradicardia, bloqueios, arritmias, hipotensão. No ECG observa-se elevação do segmento ST e do intervalo QT.
Abordagem inicial
A abordagem da hipocalcemia passa pela avaliação da função das paratireoides, níveis de vitamina D e função renal. Inclui a monitorização do paciente (ECG, gasometria, Na+, K+, Cl-, Ca iônico, Ca total, fósforo e magnésio), suporte respiratório quando necessário, acesso venoso e o tratamento da(s) causa(s) de base.
Tratamento específico
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Para os casos assintomáticos e os quadros sintomáticos já controlados, o tratamento preferencial é por via oral/enteral com carbonato de cálcio e calcitriol. A dose do carbonato de cálcio varia de 30 a 100 mg/Kg/dia no período neonatal e, após esse período, é de 20 a 60 mg/Kg/dia. A dose do calcitriol é de 0,01a 0,05 mg/Kg/dia.
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Nos casos sintomáticos ou com alterações significativas no ECG, está indicada a infusão venosa de gluconato de cálcio:
Gluconato de cálcio 10% (cada 1 mL = 9,8 mg de cálcio elementar)
10 a 20 mg/Kg de cálcio elementar (= 1 a 2 ml/Kg)
Diluir com AD ou SF 0,9% na proporção 1:3 até 1:10
Infundir EV em BIC em 5 a 10 minutos (em caso de bradicardia, suspender imediatamente a infusão).
Distúrbios da concentração do Fósforo
O fósforo é o principal ânion do compartimento intracelular, onde integra a estrutura da membrana fosfolipídica e dos ácidos nucleicos (DNA, RNA), incluindo nucleotídeos, ATP, ADP, entre outros. Participa de atividades musculares e neurofisiológicas, da mineralização óssea, excreção ácida urinária, entre outras funções importantes. Cerca de 85% do fósforo corporal se encontra nos tecidos mineralizados (ossos e dentes) e 14 a 15% estão localizados nos tecidos não mineralizados. Somente 0,1% circulam no meio extracelular (plasma e interstício).
Faixas de normalidade do fósforo
0 a 3 meses: 4,8 a 7,4 mg/dL; 1 a 5 anos: 4,5 a 6,5 mg/dL; 6 a 12 anos: 3,6 a 5,8 mg/dL; > 13 anos: 2,3 a 4,5 mg/dL
Hiperfosfatemia
É definida quando os valores plasmáticos de fosfato estão acima da referência superior para a faixa etária:
0 a 3 meses: > 7,4 mg/dL; 1 a 5 anos: > 6,5 mg/dL; 6 a 12 anos: > 5,8 mg/dL; a partir de 13 anos: > 4,5 mg/dL
Entre as causas de hiperfosfatemia, citamos a acidose, enemas de fosfato, nutrição parenteral, rabdomiólise, hemólise, síndrome de lise tumoral, hipervitaminose D, hipoparatireoidismo, entre outros.
Elevações agudas do fósforo levam à hipocalcemia. A maioria dos sinais e sintomas de hiperfosfatemia se deve à hipocalcemia secundária, ou seja, espasmos musculares, tetania, convulsões, arritmias cardíacas, aumento do intervalo QT etc.
O tratamento consiste em abordar a doença de base, retirar o fosfato da dieta enteral ou do aporte parenteral, hidratação venosa com solução salina isotônica, uso de quelantes enterais de cálcio (hidróxido de alumínio, 50 mg/Kg a cada 8 horas), diurético osmótico (manitol), infusão de solução polarizante de glico-insulina e, se necessário, terapia dialítica.
Hipofosfatemia
É definida quando os valores plasmáticos de fosfato estão abaixo da referência inferior para a faixa etária:
0 a 3 meses: < 4,8 mg/dL; 1 a 5 anos: < 4,5 mg/dL; 6 a 12 anos: < 3,6 mg/dL; a partir de 13 anos: < 2,3 mg/dL
Entre as causas de hipofosfatemia, destacam-se a desnutrição, síndrome da recuperação nutricional, prematuridade, síndrome de má absorção, nutrição parenteral, medicamentos (aminas vasoativas, salbutamol, diuréticos, corticoides), hiperparatireoidismo, tubulopatias, raquitismo hipofosfatêmico, sepse, entre outros.
As manifestações clínicas dependem da etiologia, da magnitude e do tempo de instalação e podem ser inespecíficas (náuseas, vômitos, hiporexia) ou incluir sintomas musculoesqueléticos (mialgia, fadiga muscular, paresias, miopatia proximal, disfagia, íleo paralítico, rabdomiólise, osteomalácia, osteoporose). O paciente pode apresentar ainda disfunção hepática e sintomas neurológicos (irritabilidade, tremores, confusão mental, convulsões, polirradiculoneurite tipo Guillain-Barré, coma). Pacientes com quadros muito graves (fósforo sérico < 1mg/dL) podem apresentar também manifestações cardíacas (arritmias, miocardiopatias, insuficiência cardíacas congestiva e hipotensão arterial).
O tratamento dos casos leves pode ser feito por via oral, com xarope de fosfato dibásico 40 mg/ml na dose de 1 a 2 ml/Kg/dia (40 a 80 mg/Kg/dia) fracionado em 4 doses diárias. O tratamento parenteral está indicado quando o fósforo está abaixo de 1,0 mg/dL, em casos sintomáticos, críticos ou em cenários de risco. A preparação utilizada é o fosfato de potássio 2 mEq/mL (2 mEq = 62 mg de fósforo elementar/mL) na dose de 5 a 10 mg/Kg EV em BIC em 6 horas (dose máxima em 24 horas: 2 mEq/Kg).
Distúrbios da concentração do Magnésio
O magnésio é o principal cátion divalente do meio intracelular (99% do magnésio corporal se encontra no interior das células) e se localiza principalmente nos músculos e ossos. Apenas 1% circula no meio extracelular e destes, somente cerca de 60% se encontra na forma ionizada ativa. O magnésio participa ativamente de inúmeras reações enzimáticas do metabolismo celular com funções no metabolismo energético, síntese de proteínas e ácidos nucleicos. Atua ainda nos processos de neurotransmissão, excitabilidade cardíaca e no tônus vascular.
Faixas de normalidade do magnésio:
período neonatal: 1,5 a 2,2 mg/dL; 1 mês a 1 ano de idade: 1,6 a 2,3 mg/dL; > 1 ano de idade: 1,7 a 2,5 mg/dL
Hipomagnesemia
É definida quando os níveis plasmáticos de magnésio estão abaixo da referência inferior para a faixa etária (neonatal < 1,5 mg/dL; lactentes até 1 ano < 1,6 mg/dL e acima de 1 ano < 1,7 mg/dL), embora somente abaixo de 1,2 mg/dL, o quadro se torna clinicamente significativo.
A hipomagnesemia é um distúrbio frequente em crianças hospitalizadas em UTI's pediátricas e neonatais e pode ocorrer quando a oferta não é suficiente (dieta ou nutrição parenteral inadequadas) ou quando há aumento da excreção renal (doença renal crônica, tubulopatias, hipercalciúria...) ou intestinal (diarreia, síndrome de má absorção, doença inflamatória intestinal, fibrose cística, desnutrição, entre outras). Outras causas possíveis são a alcalose, hiperaldosteronismo, SIADH, hipercalcemia e uso de alguns medicamentos (furosemida, tiazídicos, manitol, aminoglicosídeos, ciclosporina, tacrolimo...).
As manifestações clínicas da hipomagnesemia se assemelham às manifestações da hipocalcemia e incluem letargia, perda de força muscular, tremores, fasciculações, tetania e convulsões, arritmias cardíacas, entre outras. No ECG poder aparecer prolongamento dos intervalos PR e QT, alargamento do QRS, diminuição ou inversão da onda T, extra-sístoles, taquicardia ventricular, fibrilação ventricular.
O tratamento deve levar em consideração a etiologia (gastrointestinais, renais, endócrina...) e os níveis de magnésio, cálcio, potássio incluindo também a gasometria. Nos quadros assintomáticos a reposição pode ser feita com sulfato de magnésio pó para solução oral na dose de 100 a 200 mg/Kg/dose a cada 4 a 6 horas. Nos casos críticos com risco de arritmias ou convulsões é indicada a aplicação parenteral de sulfato de magnésio a 10% na dose de 25 a 50 mg/Kg, diluído em soro fisiológico para uma concentração de 10 mg/ml infundido EV em BIC por via endovenosa, em 30 a 60 minutos. Durante a infusão o paciente deverá estar monitorizado (PA, ECG, FC, saturação...) pelo risco de depressão respiratória, arritmias, hipotensão, hiporreflexia, paralisia flácida etc. Após cada medida de reposição (enteral ou parenteral), obter novos níveis séricos de magnésio e repetir a aplicação se necessário após 4 a 6 horas.
Hipermagnesemia
É definida quando os níveis plasmáticos de magnésio estão acima da referência superior para a faixa etária (neonatal > 2,2 mg/dL; lactentes até 1 ano > 2,3 mg/dL e acima de 1 ano > 2,5 mg/dL). A hipermagnesemia é um distúrbio menos frequente que a hipomagnesemia e pode ocorrer pela administração de medicamentos contendo magnésio, em pacientes com lesão renal aguda ou doença renal crônica. Raramente ocorre em pacientes com função renal normal.
As manifestações clínicas ficam evidentes quando os níveis de magnésio estão acima de 5 mg/dL e incluem náuseas, vômitos, depressão do sistema nervoso central (letargia, sonolência, coma, apneia, óbito), comprometimento na junção neuromuscular (quadriplegia flácida, hiporreflexia, retenção urinária, constipação intestinal), bradicardia, distúrbios da condução cardíaca, entre outros.
O tratamento se baseia em interromper a oferta de magnésio (oral ou parenteral) e utilizar o gluconato de cálcio, que é seu antagonista direto, na dose de 20 a 30 mg/Kg EV (2 a 3 mL/Kg do gluconato de cálcio 10%) em 5 a 10 minutos (diluir com AD ou SF 0,9% na proporção 1:3 até 1:10). Além da infusão de gluconato de cálcio, recomenda-se o uso de furosemida 1 mg/Kg EV. Em casos de comprometimento na função renal, está indicada a terapia dialítica.
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