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CETOACIDOSE DIABÉTICA

Cetoacidose Diabética

A insulina atua no transporte de glicose para o compartimento intracelular, se ligando a receptores específicos nas membranas das células. Essa ligação é responsável pela ativação da via de transporte, aumentando a capacidade da célula captar glicose da corrente sanguínea e utilizá-la como fonte de energia para o metabolismo celular. Além disso, a insulina também inibe a produção de glicose pelo fígado (inibe a gliconeogênese) e promove a formação de glicogênio como forma de armazenamento de glicose, entre outras funções importantes na regulação metabólica. 
 

No diabetes mellitus tipo 1 ocorre uma redução da produção de insulina por ação de autoanticorpos que atacam as células beta das ilhotas pancreáticas (doença autoimune). Sabe-se que a doença está relacionada a fatores genéticos e ambientais. Esse quadro se manifesta mais frequentemente na infância ou adolescência. A redução da glicose no compartimento intracelular e o acúmulo de glicose no plasma, irão ocasionar alterações significativas no metabolismo com importante comprometimento da homeostase e graves repercussões fisiológicas sistêmicas.

Fisiopatologia

As principais complicações agudas nos pacientes com DM1 são a hipoglicemia e a cetoacidose. A cetoacidose diabética (CAD) é a causa mais comum de hospitalização e óbito em crianças diabéticas. É caracterizada pela tríade: hiperglicemia, acidose metabólica com elevação do ânion-gap e cetonemia. Por vezes a CAD é a primeira manifestação clínica do diabetes melitus tipo I. 

 

Trata-se de um distúrbio em que ocorre alteração significativa do metabolismo de proteínas, lipídeos, carboidratos, eletrólitos e água. Isso ocorre devido à deficiência de insulina associada ou não à maior atividade dos hormônios contrarreguladores (glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio do crescimento). Esses hormônios contrarreguladores se elevam em situações de infecção e estresse e frequentemente precipitam o quadro de CAD em pacientes diabéticos. Paralelamente, a hiperglicemia, a desidratação, a hiperosmolaridade, os distúrbios eletrolíticos e acidobásicos, perpetuam a liberação dos hormônios contrarreguladores, criando um perigoso ciclo vicioso.

Existem diversos protocolos para tratamento da CAD, mas, apesar da existência de algumas diferenças entre eles, todos incluem a necessidade de internação, a reposição adequada de fluidos e eletrólitos, a correção da deficiência de insulina e o monitoramento clínico e bioquímico constantes, com o objetivo de restabelecer completamente as funções metabólicas e evitar complicações agudas como edema cerebral, hipoglicemia, hipocalemia, entre outras.

Diagnóstico

Diagnóstico Clínico

Sintomas clássicos como poliúria, polidipsia, polifagia, perda inexplicada de peso, acompanhados de fadiga, vômitos, náuseas, dor abdominal, sinais de desidratação, hiperpnéia (respiração de Kussmaul), hálito cetônico, alteração no sensório evoluindo com sonolência, torpor e coma. Deve-se suspeitar de CAD em todo paciente que apresentar quadro de depressão do sensório com ou sem sinais clínicos de acidose, devendo-se sempre realizar glicemia capilar e ou pesquisa de cetonúria na avaliação inicial. Se não houver intervenção em tempo adequado, o quadro pode evoluir com choque hipovolêmico e óbito.

 

Diagnóstico Laboratorial

 

- Glicemia > 200mg/dl, associada a glicosúria
- Acidose metabólica (pH arterial < 7,3  e/ou  bicarbonato sérico < 15 mmol/l, com elevação do ânion-gap)
- Cetonemia > 3 mmol/l, associada a cetonúria (3 ou 4 cruzes).

A classificação da cetoacidose diabética se baseia na gasometria e inclui os seguintes parâmetros:

- Leve: pH entre 7,2 e 7,3 e/ou HCO3- entre 10 e 15 mmol/l 

ModeradapH entre 7,1 e 7,2 e/ou HCO3- entre 5 e 10 mmol/l 

- Grave: pH < 7,1 e/ou HCO3- < 5 mmol/l

Tratamento

1. Conduta inicial

  • Monitoramento multiparâmetro (TPPAR, monitoramento ECG, saturação de O2, diurese, Glasgow)

  • Garantir via aérea pérvia

  • Oferecer oxigênio (se saturação < 94%)

  • Obter dois ou mais acessos venosos calibrosos

  • Corrigir instabilidade hemodinâmica (correção da desidratação)

  • Dieta zero até sair da cetoacidose   

Exames laboratoriais iniciais:

   - Hemograma, PCR

   - Glicemia plasmática 

   - Gasometria

   - Eletrólitos, uréia, creatinina

   - Cetonemia

   - Cálculo da osmolaridade sérica efetiva*

   - Urina: EAS PHQ + pesquisa de cetonúria

* Osmolaridade sérica =

     [2 x Na + (ureia/6) + (glicose/18)]  (VR: 280 a 310 mOsm/L)

2. Corrreção da desidratação 

 

  • Na ausência de sinais de choque, infundir soro fisiológico (NaCl 0,9%) no volume de 20 ml/kg/hora, repetindo se necessário até corrigir a desidratação (velocidade de infusão máxima de 1000 ml por hora).

 

  • Se houver sinais de choque, infundir soro fisiológico (NaCl 0,9%) no volume de 50 ml/kg/hora (velocidade de infusão máxima de 1000 ml por hora). 

3. Hidratação venosa de manutenção e insulinoterapia

(simultaneamente e em acessos venosos distintos)

Somente após a correção da desidratação é que se deve iniciar a hidratação venosa de manutenção e a insulinoterapia!

 

- HV de manutenção

  • Soro Fisiológico (NaCl 0,9%) no volume de 1800 a 2000 mL/m2 SC*/dia  

  • Cloreto de Potássio** (KCl 10% ou KCl 19,1%):

- Se a dosagem sérica de K+ estiver entre 3,0 e 4,5 mEq/L, acrescentar 40 mEq/L de K+ ao soro fisiológico. 

- Se a dosagem sérica de K+ estiver entre 4,5 e 6,0 mEq/L, acrescentar 20 mEq/L de K+ ao soro fisiológico. 

- Caso a dosagem sérica de K+ estiver maior ou igual a 6,0 mEq/L, não acrescentar K+ ao soro fisiológico. 

Superfície corporal: 

   SC = (4 x Peso) + 7 / (Peso + 90)

** Iniciar a reposição de potássio somente se a função renal estiver preservada com diurese satisfatória

 

- Insulinoterapia

  • Insulina regular por via endovenosa 

  • Infusão contínua EV: 0,1 U / kg / hora

  • Utilizar um acesso venoso específico para insulina. 

  • Preparo da solução: Diluir 25 UI de insulina regular em 250 ml de SF 0,9% [concentração da solução = 0,1 UI/ml. Infundir a 1ml/Kg/h (= 0,1UI/Kg/h)]

  • Lavar o equipo com 50 ml da solução (devido a ligação da insulina à parede do frasco de soro) e trocar os frascos de 6/6 horas.

 

- Observações importantes

  • A queda desejada da glicemia é de 75-100 mg/dL por hora. Se a resposta for lenta (< 50 mg/dL por hora) pode-se aumentar a velocidade de infusão de insulina (titulando até 0,2 U / kg / hora). Se a queda for rápida (> 100mg/dL por hora), diminuir a velocidade de infusão de insulina (reduzir para 0,05 U / kg / hora). Quando a glicemia cair a 250mg%, substituir o Soro Fisiológico (NaCl 0,9%) por Soro Glicofisiológico (SG 5% e SF 0,9% na proporção 1:1). 

  • Em caso de queda rápida da glicemia (> 100 mg/dL/hora), apesar da insulina já estar com sua infusão reduzida para 0,05 ui/kg/hora, será necessário incrementar a infusão de glicose associada ao soro fisiológico (SG 5% + SF 0,9%), na proporção 1:1 ou 2:1 (se necessário).  

  • A dieta deverá ser liberada assim que o paciente apresentar melhora clínica e sair do quadro de cetoacidose (com comprovaçao laboratorial). A administração da HV de manutenção deverá ser mantida até que haja plena aceitação de líquidos e alimentos por via oral.

Monitoramento laboratorial até a correção da Acidose:

Controle sérico de 2/2 horas:

- Glicemia plasmática

- Na+, K+, Cai, Cl e P

- Gasometria venosa

- Cetonemia/cetonúria.

- Glicemia capilar 1/1 hora *

 

Após a resolução da acidose, o controle sérico poderá ser a cada 4h: 

- Glicemia plasmática

- Na+, K+

- Ureia

- Gasometria venosa 

* A glicemia capilar é cerca de 15% inferior à plasmática

4. Correção dos distúrbios hidroeletrolíticos

- Potássio

 

A reposição de potássio é iniciada rotineiramente quando se inicia a HV de manutenção, geralmente a partir da segunda hora de tratamento da CAD (após a correção da desidratação), desde que a função renal esteja preservada, que haja presença de diurese satisfatória e potassemia < 6,0. O objetivo é manter o K+ sérico entre 4,0 e 5,0 mEq/L.

  • Se K+ sérico chegar a ≤ 3,0 mEq/L, fazer reposição de K+ na velocidade de 0,5 mEq/Kg/h em 4 a 6 horas. 

- Sódio

 

Na CAD, a tendência é que o "pool" total de sódio no organismo esteja reduzido. Calcula-se uma redução de 1,6 mEq/L no sódio sérico a cada 100mg/dL de elevação da glicose. A natremia, no entanto, pode estar normal, baixa ou até mesmo elevada. A hiponatremia deve ser evitada e combatida prontamente, devido ao risco de edema cerebral. Em caso de hpernatremia, tolerar sódio sérico até 160mEq/L, pois mantém efeito protetor contra edema cerebral. 

5. Transição da insulina regular venosa para subcutânea

A insulina regular venosa só poderá ser substituída pela insulina regular subcutânea se:

  • pH > 7,3 e

  • Bicarbonato > 15

  • Anion gap normal

  • Paciente se alimentando

  • Glicemia < 250

  • Osmolalidade plasmática entre 280 e 300 mOsm/

 

Iniciar a 1ªdose de insulina regular subcutânea cerca de trinta minutos a 1 hora antes de suspender a insulina venosa.
Insulina subcutânea: 0,1 a 0,2 U / k

6. Manejo da insulinoterapia após a reversão da cetoacidose

Corrigida a cetoacidose e realizada a primeira dose da insulina subcutânea, monitorizar as glicemias antes das refeições (café da manhã, almoço, lanche e jantar), ao deitar e uma vez durante a madrugada (por ex.: às 7h, 11h, 15h, 18h, 22h e 3h) e realizar as correções necessárias com insulina regular subcutânea (exceto de madrugada) conforme os esquemas abaixo:

Manter glicemia das 22h acima de 100 mg%. A glicemia da madrugada é para ajuste de doses no dia seguinte, e NÃO deve ser realizada insulina ou bolus de glicose nesse horário, exceto se hipoglicemia sintomática (convulsão, sudorese ou coma).

7. Hipoglicemia

 

Se glicemia capilar estiver inferior a 60 mg/dl mas a criança/adolescente estiver assintomática, prescrever apenas alimentos: 150ml de suco de laranja + 1 colher de sopa rasa de açúcar (equivale a 30g de carboidratos) ou biscoito de maisena com 150 ml de suco. 

Para o caso de hipoglicemia com paciente sintomático, infundir 0,5g/kg de glicose por via endovenosa, em B.I.C. em 10 minutos. Opções:

 - SG 10% (20ml de Glicose a 50% + 80 ml de ABD), na dose de 5ml/kg

 - ou SG 25% (SG 50% + ABD na proporção 1:1), na dose de 2 mL/Kg, EV em B.I.C. em 10 minutos

 

Checar a glicemia após 20 minutos, repetindo a conduta se necessário. 

LEIA MAIS...

  1. CASTELLANOS, L.; TUFFAHA, M.; KOREN, D.; LEVITSKY, LL. Management of Diabetic Ketoacidosis in Children and Adolescents with Type 1 Diabetes Mellitus. Paediatr Drugs, v. 22, n. 4, p. 357-367, 2020. doi: 10.1007/s40272-020-00397-0.

  2. TZIMENATOS, L.; NIGROVIC, LE. Managing Diabetic Ketoacidosis in Children. Ann Emerg Med, v. 78, n. 3, p. 340-345, 2021. doi: 10.1016/j.annemergmed.2021.02.028.

  3. EBSERH. Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora. Gerência de Atenção à Saúde. Unidade de Atenção à Saúde da Criança e Adolescente. Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica: Cetoacidose Diabética. Juiz de Fora, 2017.

  4. PIVA, J. P.; SOLEDADE, M. A.; CZEPIELEWSKI, M. A. Cetoacidose Diabética. In: PIVA, J. P.; GARCIA, P. C. R. (Orgs.). Medicina Intensiva em Pediatria. 2. ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2015.

  5. PIVA, Jefferson Pedro; CZEPIELEWSKI, Mauro Antônio; GARCIA, Pedro Celiny Ramos; MACHADO, Denise. Cetoacidose Diabética. In: PROTIPED: Programa de Atualização em terapia Intensiva pediátrica. Ciclo 1, Volume 3. Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2010.

  6. FARHAT, Sylvia Costa Lima; MANNA, Thais Della. Cetoacidose Diabética e Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico. In: SCHVARTSMAN, Claudio; REIS, Amélia Gorete; FARHAT, Sylvia Costa Lima (Orgs.). Pronto-Socorro: Pediatria Instituto da Criança Hospital das Clínicas FMUSP. 1. ed. Barueri: Manole, 2009.

  7. SALVOLDELLI, Roberta Diaz; SILVA, Mariana Moraes Xavier da; MENEZES Filho, Hamilton Cabral de; DICHTCHEKENIAN, Vaê, DAMIANI Durval. Emergências em Endocrinologia Pediátrica. In: DAMIANI Durval (Org.). Endocrinologia na Prática Pediátrica: Pediatria Instituto da Criança Hospital das Clínicas FMUSP. 1. ed. Barueri: Manole, 2008.

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