INFECÇÃO DO TRATO URINÁRIO
Introdução
O trato urinário é estéril (ausência de bactérias), exceto pela extremidade distal da uretra que é habitualmente colonizada por bactérias da flora intestinal. A ausência de bactérias no trato urinário se deve às suas características anatômicas, imunológicas e funcionais, destacando-se o fluxo urinário contínuo e o completo esvaziamento da bexiga.
A Infecção do Trato Urinário (ITU), consiste na presença e multiplicação de germes patogênicos no sistema urinário resultando em processo inflamatório sintomático. Cada episódio de ITU é ocasionado tipicamente por um único tipo de bactéria. A ITU é uma das infecções bacterianas mais prevalentes em pediatria, ocorrendo mais frequentemente em meninas acima de um ano de idade. No primeiro ano de vida a ITU ocorre com frequência semelhante em meninos e meninas, com tendência a ser mais frequente nos meninos durante o primeiro semestre de vida.
A ITU pode ser classificada em "baixa" ou "alta" de acordo com o sítio anatômico comprometido no trato urinário. Na ITU baixa ou cistite, o processo inflamatório se situa na mucosa da bexiga urinária. Na ITU alta ou pielonefrite, as bactérias ascendem para os rins por meio do trato urinário superior, causando inflamação no parênquima renal. Caso a ITU não seja imediatamente diagnosticada e tratada de modo adequado, pode ocasionar complicações, incluindo sepse, abscesso renal, hidronefrose e formação de cicatrizes renais. As cicatrizes renais são lesões permanentes, em que o tecido renal lesado é substituído por tecido conjuntivo cicatricial. Quadros recorrentes de ITU podem ampliar essas lesões e, no futuro, evoluírem com redução da função renal, hipertensão arterial, entre outras complicações.
Em lactentes, destacam-se, como fatores predisponentes para ITU, o refluxo vesico ureteral (RVU), estenose de junção uretero-pélvica, válvula de uretra posterior e outras anomalias estruturais do sistema urinário. A partir da idade pré-escolar (dois a cinco anos de idade), as alterações funcionais do trato urinário é que se apresentam como os principais fatores predisponentes, destacando-se a disfunção vesical e intestinal (DVI), a bexiga neurogênica, entre outras. É importante sempre questionar a família sobre o funcionamento intestinal e urinário detalhadamente, lembrando que, de um modo geral, a partir de 2 a 3 anos de idade, já há controle esfincteriano adequado durante o dia e, até os 5 anos, a criança já tem controle também durante a noite.
Etiologia
A Escherichia coli é o agente etiológico mais frequente em todas as faixas etárias, sendo responsável por 80 a 90% dos episódios agudos de pielonefrite adquirida na comunidade, em crianças. No período neonatal, outros possíveis agentes incluem Klebsiella spp., Enterococcus spp. e Streptococcus do grupo B. Após o período neonatal, outros agentes incluem Klebsiella spp., Proteus mirabilis e, na adolescência, o Staphylococcus saprofiticus. Nos primeiros meses de vida ou em casos de anomalias do trato urinário não é raro a presença bactérias menos comuns, como o Enterobacter e Pseudomonas.
Quadro Clínico
O quadro clínico varia de acordo com a faixa etária e a gravidade da infecção.
Nos casos de cistite, os sintomas são mais localizados, com alteração de odor, cor ou volume da urina, dor abdominal em baixo ventre, disúria, polaciúria, incontinência, urgência miccional, enurese secundária, podendo, ou não, apresentar febre. O quadro da pielonefrite tende a apresentar, além dos sintomas locais, manifestações clínicas sistêmicas, tais como, prostração, febre alta, vômitos, recusa alimentar, dor abdominal, dor lombar e nos casos mais graves, sinais de sepse.
Em lactentes, outras manifestações de ITU incluem choro frequente, irritabilidade, sono irregular, hiporexia, diarreia e perda ponderal. Os recém-nascidos podem ainda apresentar icterícia, devido a um quadro de colestase, como manifestação clínica de ITU.
Diagnóstico
Após a suspeição clínica, a coleta adequada de urina é crucial para o correto diagnóstico de ITU.
A urocultura é o padrão ouro para diagnóstico de ITU, mas necessita de pelo menos 48h para o resultado. Sendo assim, o EAS com piúria e hematúria quantitativas, associado à bacterioscopia da lâmina de urina corada pelo Gram poderá antecipar o provável diagnóstico de ITU se apresentar:
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piúria aumentada: contagem acima de 10 leucócitos (piócitos) por campo de grande aumento ou acima de 10.000/mL (quantitativa)
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nitrito positivo
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esterase leucocitária positiva
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presença de bactérias de um único padrão morfológico na bacterioscopia (na maioria das vezes, bacilos gram negativos)
A contagem de colônias bacterianas a ser considerada para a confirmação do diagnóstico de ITU na urocultura irá depender do método de coleta:
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Se a urina for obtida por punção supra púbica: qualquer contagem de colônias bacterianas de um único tipo de bactéria define o diagnóstico de ITU.
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Se a urina for obtida por cateterismo vesical (sonda uretral): uma contagem de colônias acima de 50.000 UFC/ml de um único tipo de bactéria define o diagnóstico de ITU.
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Se a urina for obtida por jato intermediário (jato médio): o diagnóstico de ITU é definido se houver contagem de colônias acima de 100.000 UFC/ml de um único tipo de bactéria .
Embora seja um método muito utilizado na prática para coleta de urina em lactentes, a urina coletada por saco coletor costuma não ser considerada válida para diagnóstico de ITU, por causa da alta probabilidade de contaminação. No entanto, quando esse for o único método possível, deverá seguir as seguintes recomendações:
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assepsia rigorosa da região perineal
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troca do saco coletor a cada 30 minutos precedida de nova assepsia, até que haja micção
Mesmo assim, só considerar o resultado como válido, se:
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criança com alta suspeita clínica de ITU e
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crescimento de um único tipo de germe na urocultura e
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contagem de colônias bacterianas acima de 100.000 UFC/mL
Caso seja possível, confirmar o diagnóstico posteriormente com urina coletada por método invasivo (cateterismo vesical).
Exames de imagem
Ultrassonografia de rins e vias urinárias
Toda criança, meninos e meninas, em qualquer idade, com diagnóstico de certeza de ITU, merece uma investigação por imagem, pelo menos uma ultrassonografia de rins e vias urinárias, por ser um exame não invasivo e isento de radiação ionizante. O objetivo do exame é detectar a existência de malformações do sistema urinário, embora uma ultrassonografia normal não exclua a existência dessas alterações.
Quanto a outros exames de imagem, como a uretrocistografia miccional e cintilografia renal estática (DMSA), não há consenso na literatura sobre os critérios para sua realização. Há divergências com relação à gênero, idade, o momento para realização de cada exame e quais seriam os critérios clínicos em que o exame pode contribuir de modo significativo. Independente dessas divergências, esses exames têm sua indicação definida pelo padrão ouro de cada um.
Uretrocistografia miccional
A uretrocistografia miccional é o melhor exame para o diagnóstico de refluxo vesico ureteral. É um exame invasivo e desconfortável para a criança e inclui significativa exposição da criança à radiação ionizante. No entanto, os benefícios do diagnóstico superam o risco limitado associado à exposição. Em geral, quando indicado, o exame é realizado, no mínimo, trinta dias após o término do tratamento da ITU.
Cintilografia renal estática (DMSA)
É o padrão ouro para o diagnóstico de cicatrizes renais. Como em qualquer outro exame de medicina nuclear, o paciente é exposto a uma pequena dose de radiação, considerada segura. O exame é realizado, geralmente, pelo menos seis meses após o tratamento do episódio de ITU.
Tratamento
Em crianças com sintomas de ITU associados a alterações no exame de urina (nitrito positivo, esterase leucocitária positiva, piúria aumentada e presença de bactérias na bacterioscopia), a antibioticoterapia deve ser iniciada o quanto antes visando à erradicação da infecção e prevenção das complicações. Idealmente, antes do início do tratamento antimicrobiano, deve-se coletar uma amostra da urina para realização de urocultura e antibiograma.
A definição de tratamento com antibiótico oral (com acompanhamento ambulatorial) ou parenteral (em regime de internação hospitalar) deve levar em consideração alguns aspectos que indicam o risco de complicações do episódio de ITU:
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Faixa etária do paciente, considerando maior risco de complicações em menores de 3 meses;
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Comprometimento do estado geral, manifestações clínicas sistêmicas;
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Dificuldade de aceitação da ingesta oral ou presença de vômitos;
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Presença de comorbidades;
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Existência de alterações estruturais ou funcionais do sistema urinário;
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Aspectos sociais que comprometem o acesso ou a administração correta da medicação oral.
Em geral, o tratamento das cistites é feito com medicação oral e acompanhamento ambulatorial, enquanto o tratamento das pielonefrites agudas, se dá em nível hospitalar com medicação parenteral. A duração do tratamento varia de 7 a 14 dias e os antibióticos mais adequados ao tratamento das ITU's são:
Via parenteral:
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Ceftriaxona 50 a 100 mg/kg/dia (12/12h ou 24/24h)
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Gentamicina 7,5 mg/kg/dia (8/8h)
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Amicacina 15 a 22,5 mg/kg/dia (12/12h)
Via oral:
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Cefalexina 50 a 100 mg/kg/dia
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Cefadroxila 30 a 50 mg/kg/dia
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Cefuroxima axetil 30 mg/kg/dia
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Amoxicilina + clavulanato 50 a 90 mg/kg/dia
Nos casos de tratamento ambulatorial com antibioticoterapia oral, é necessário reavaliar o paciente em 48 a 72 horas, com base na evolução clínica principalmente, mas também no resultado da urocultura e antibiograma.
Profilaxia
O objetivo da profilaxia antimicrobiana é reduzir os episódios recorrentes de pielonefrite e a formação ou piora de lesões e cicatrizes renais, embora sua eficácia não esteja tão bem estabelecida. Há dificuldades em se manter a profilaxia, considerando a difícil adesão à antibioticoterapia diária, os efeitos colaterais das medicações e o risco de surgimento de resistência bacteriana. Apesar disso, sabe-se que alguns pacientes portadores de anormalidades significativas do trato urinário podem se beneficiar com o uso contínuo de antibióticos profiláticos. Estes incluem crianças com alterações na ultrassonografia, crianças portadoras de refluxo vesico ureteral graus 4 ou 5, uropatias obstrutivas (estenose de junção uretero-pélvica, válvula de uretra posterior), entre outras. Nesses pacientes a profilaxia deve ser mantida até a realização de toda a propedêutica de imagem e/ou até a intervenção cirúrgica corretiva, quando for o caso. Os medicamentos mais utilizados atualmente na quimioprofilaxia são a nitrofurantoína ou sulfametoxazol-trimetroprim (nos maiores de 6 semanas de vida) e a cefalexina (nos menores de 6 semanas). A dose profilática corresponde a 1/3 da dose terapêutica, administrada uma vez ao dia (de preferência à noite).
Além da quimioprofilaxia, outras medidas profiláticas incluem:
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Ir ao banheiro com regularidade (a cada 3 ou 4 horas) para urinar, mesmo se não tiver vontade
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Não segurar a urina quando der vontade de urinar
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Higiene adequada da região perineal (genitália e ânus)
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Ingerir líquidos frequentemente (pelo menos 1 litro de água por dia)
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Urinar antes de dormir;
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Não tomar líquidos a partir de duas horas antes de dormir
SOUZA, Vandréa de; MARQUES, Denise. Infecção urinária: diagnóstico, investigação e prevenção. Documento Científico n. 101. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Nefrologia (gestão 2022-2024), Rio de Janeiro: 13 set. 2023. 9p. Disponível em: https://29c622eb-e6e1-4255-adeb-f514c291705e.filesusr.com/ugd/aa34d5_f12f7aa8759046f694e52cea67e27af1.pdf. Acesso em: 10 out. 2023.
Amoxicilina + Clavulanato
Apresentação: suspensão 250 mg + 62,5 mg/5 ml; 400 mg + 57 mg/5 ml; comprimidos 500 mg
Calcular a dose: Calcular pela amoxicilina 50 mg/kg/dia ou 90 mg/Kg/dia (pneumococos com resistência intermediária)
Posologia: A dose diária deve ser fracionada em duas ou três tomadas, de 8/8 h ou 12/12 horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias
Cefalexina
Apresentação: suspensão 250 mg/5mL; drágeas de 500 mg
Calcular a dose: 50 mg/kg/dia
Posologia: A dose diária deve ser fracionada em quatro tomadas, de 6/6horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias
Cefadroxila
Apresentação: suspensão 250 mg/5mL; cápsulas de 500 mg
Calcular a dose: 25 a 50 mg/kg/dia
Posologia: A dose diária deve ser fracionada em duas tomadas, de 12/12 horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias
Cefuroxima (axetilcefuroxima)
Apresentação: suspensão 250 mg/5mL; comprimidos de 250 ou 500 mg
Calcular a dose: 30 mg/kg/dia
Posologia: A dose diária deve ser fracionada em duas tomadas, de 12/12 horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias
Ceftriaxona
Apresentação: Frascos de 500 mg ou 1 g (para aplicação IM)
Calcular a dose: 50 a 100 mg/kg/dia
Posologia: 12/12h ou 24/24 horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias
Gentamicina
Apresentação: Ampolas de 80 mg / 2 mL
Calcular a dose: 5 a 7,5 mg/kg/dia
Posologia: 8/8h, 12/12h ou 24/24 horas
Duração do tratamento: 7 a 10 dias